Ao deparar com minha foto aos 9 anos senti uma alegria danada por aquela garotinha incrível que reconheci na imagem. Deu vontade de abraçá-la e agradecer imensamente por ter sido simplesmente ela em todas as situações, o que não foi fácil, nunca é, ainda mais para uma garotinha que falava pelos cotovelos, não parava por um minuto, conversava, ria e se divertia em qualquer situação. Ela foi uma menina feliz, esbanjava alegria e boas risadas por onde passava. 

Adorava brincar com os meninos e vivia arrumando briga com as meninas. Corria pela rua descalça, não gostava de sapatos nos pés. Queria aprender a voar, mas desistiu e aprendeu a dar cambalhotas. Tentou fazer estrelinhas, insistiu tanto e depois de muitos tombos resolveu parar. Amava a liberdade do circo, a habilidade dos trapezistas e a elasticidade das bailarinas. Desejava ser professora com todo seu coração e depois de alguns anos já não sabia mais o que seria, talvez porque quisesse ser tantas coisas ao mesmo tempo que não conseguia abrir mão de nenhuma delas. Mas de uma coisa ela tinha certeza absoluta: queria ser mãe, mãe de meninas e muitas, imaginava que seriam seis. A imaginação era tamanha que já sabia os nomes que daria a cada uma delas. 

Gostava tanto de falar que vivia falando sozinha (ainda fala, rs) e nem imaginava que no futuro faria jornalismo. Não parava quieta, não gostava do silêncio. Vivia na rua, pulava corda, brincava de pique esconde, queimada, pega-pega e polícia/ladrão com os meninos. Subia nos muros, vivia ralada, joelhos, cotovelos, pernas e braços, faltava espaço para os roxos e machucados. Pisou no prego, quebrou o braço, cortou a cabeça e cantarolava incessantemente. Era feliz, muito. Não tinha tempo para as dores, o cansaço e a solidão. Queria estar com todos ao mesmo tempo. 

E falando em tempo, ele não espera. O tempo passou e passou rápido demais. Observo a mesma menina numa outra imagem, 40 anos depois e por incrível que pareça o brilho nos olhos, o sorriso largo e a risada solta são os mesmos, mas agora numa mulher de 49 anos. Ela sobreviveu, se fortaleceu e se reinventou depois de muitos tombos, arranhões, erros e dores. Doeu tanto que por vezes o ar chegou a faltar, a alma parecia ter se perdido no espaço e o coração, ah, esse chegou a sangrar. 

Mas nada a fez parar, porque esse verbo a menina mulher se recusou a conjugar durante a sua vida. Ela não veio a passeio, veio para descobrir o que tem de melhor. Veio com tamanha vontade de viver que se recusa a ser triste, a empurrar com a barriga, a ser sem cor, morna. Veio pra fazer barulho, pra colorir, pra botar fogo, pra fazer acontecer, veio pra ser feliz!

Tem tanta sede de viver que ainda vive se machucando, são arranhões, roxos, dores, que continuam pelo corpo. Tem um medo danado de não ter tido a coragem suficiente para seguir os sonhos daquela garotinha e tê-la decepcionado em algum momento. Tem um medo maior ainda de não ser suficientemente boa para as garotinhas que a encheram de vida ao longo dessa jornada e se tornaram sua razão de viver (vale registrar que não foram seis, mas chegaram a três, rs). 

A mulher de 49 anos tem um orgulho tremendo de todas as Ednas que a costuraram e a teceram nesse caminho. Elas foram carregadas força, intuição, fé, medo, vaidade, teimosia, alegrias, loucuras, sonhos, dúvidas, ousadia e tantos outros sentimentos, emoções, valores, atitudes, escolhas e descobertas. Foram muitas mulheres que se fundiram, se completaram, conectaram, preencheram os espaços e formaram esse ser único, mas que segue incompleto e se construindo a cada dia. Essa talvez seja uma das poucas certezas que ela tem na vida, a sua incompletude, que a permite ser leve, humana e caminhante.

Tem uma busca constante pelo seu propósito e a capacidade de ressignificar a sua trajetória. Ganha força, amplitude e segue incomodando com sua desobediência, nadando contra o fluxo da normalidade. Mas não perde a plenitude no olhar, a força nas palavras, a coragem nas ações, a crença nos sonhos e o silêncio na alma. Sim, ela aprendeu a ouvir o silêncio, a gostar de estar só consigo mesma, a saborear a sua própria companhia. Com os olhos fechados consegue enxergar melhor e sentir aquilo que se passa a sua volta, mas principalmente dentro dela. Tem um universo enorme lá dentro, infinito, colorido e de pouquinho em pouquinho ela explora, aceita, outras vezes recusa, troca, incendeia, volta a se acalmar, chora intensamente e reconhece os seus limites. Então para e permite-se um tempo.

Ama cuidar das plantas, sujar as mãos de terra, virar de cabeça pra baixo, dar cambalhotas, brincar com os meninos e meninas e falar com seu cachorro, eles se entendem muito bem. O caminho trilhado até aqui, aos 49 anos, pode não ter sido o que foi imaginado pela menina da primeira foto, que ingenuamente não sabia que o mundo ia muito além das montanhas de Minas. Não foi um caminho reto tinham muitos buracos, mas foi repleto de outros olhos brilhantes, de mãos que se entrelaçaram, de braços que se fortaleceram, de colos que ampararam. Foram nas curvas e derrapadas desse caminho que novos sonhos nasceram e novas estradas se abriram.

Então, sigo acolhendo todas as minhas imperfeições, agradecendo minhas conquistas e batalhando pelos seus sonhos. Não sigo sozinha, levo comigo milhares de homens e mulheres que me refizeram e refazem, de alguns tenho pouco guardado pela breve passagem, mas de outros me sinto preenchida, com uma sensação de que resolveram morar em mim, se alojaram em meu peito, em minha alma e já não os sinto como parte, seguem na minha pele, na minha respiração, no meu jeito de olhar para vida. 

Hoje, mais do que nunca, ao celebrar esse momento, brindo a possibilidade do meu fazer-se constante e múltiplo. Brindo a beleza da minha vida, da permissão que me dou para ser muitas e muitos em um único ser. Brindo a alegria de me redescobrir, me aceitar e me permitir quem eu desejar ser. Brindo a permanência do amor, de modo insistente, destemido e provocador, nessa mulher que continua sendo a mesma menina. Um brinde aos 49 anos vividos até aqui.  

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