Na semana em que celebramos 75 anos da liberação de Auschwitz, o maior campo de concentração nazista, com mais de um milhão de pessoas mortas e milhares de sobreviventes a um terror inimaginável marcado na pele, na alma e na história não só daquelas pessoas, mas de todos nós, faz-se necessário um grito de atenção para que tamanha ignorância, somada à ganância e à cegueira de um poder absoluto jamais seja repetida. Em meio a todas as matérias circuladas sobre este assunto, chamou muito minha atenção o depoimento de um brasileiro de 91 anos sobrevivente de Auschwitz, quando libertado questionou: “o que quero da vida?” Acredito que deveríamos nos questionar com mais frequência sobre o que realmente importa na nossa vida. 

A princípio somos seres munidos de inteligência, racionalidade e muitas emoções, mas apesar disso ou talvez exatamente por isso, temos vivenciado decisões e retrocessos absurdos nas áreas sociais, ambientais e humanas nos últimos anos. Em contrapartida é preciso lembrar que evoluímos muito no campo das ciências e tecnologia, pesquisas e inovações. Temos hoje maior qualidade e expectativa de vida pra muita gente, demos um salto gigantesco. Mas se pararmos por um momento e nos perguntarmos: o que realmente importa nas nossas vidas, qual seria a resposta? Talvez a resposta mais ouvida seja: depende. Sim, com certeza, depende de muitas coisas. Mas principalmente, do quanto nos conhecemos, para que possamos compreender e avaliar o que realmente faz diferença na vida de cada um de nós.

Lembro que na minha infância e adolescência o que mais importava eram as férias na casa da minha avó. Já escrevi sobre isso uns anos atrás, quando falei das histórias que ouvia por lá. Agora preciso aprofundar e voltar neste mesmo espaço geográfico e temporal pra falar sobre o que importa na minha vida. Consigo lembrar o cheiro da fumaça do fogão à lenha e imediatamente o sabor da comida da minha avó faz minha língua salivar. Fecho os olhos e sou capaz de ver com clareza a vista da varanda da cozinha, onde podia ficar por horas, sentada numa mureta baixa que cercava toda varanda. Ali, meu olhar se perdia no encontro daquela pequena colina verde com o céu azul, bem ao lado da casa. Como fantasiei o que haveria depois daquele morro. Era instigador e minha imaginação viajava. Sem nenhuma dúvida, aquele era o melhor lugar do mundo.

Minha avó era uma mulher baixa, magra, cabelo longo e branco, amarrado sempre com um coque baixo. Só soltava a noite, quando penteava para dormir. Eu ficava observando. Sempre achei seu cabelo lindo e não entendia a razão de não deixá-lo solto, mas com tantas obrigações o dia todo, realmente não conseguiria. Tinha um jeito só dela de falar meu nome. Falava sorrindo. Ainda sou capaz de ouvi-la. Meu coração aperta. Quanta saudade. 

Apesar das características físicas frágeis, aquela mulher era uma fortaleza. Ficou viúva cedo e tomou a frente de tudo. Ela cuidava da terra, da casa, ‘apartava’ as vacas e pra isso, tinha sempre uma vareta grande nas mãos. Tinha suas galinhas, sabia onde botavam os ovos e fazia um som engraçado quando ia alimentá-las. Todas vinham. Sempre tentei imitar. Fazia sabão com as cinzas do fogão a lenha. Socava arroz no pilão, lavava a louça numa bacia grande e pegava lenha no final do dia pra garantir o fogo. Mantinha um caldeirão cheio de água quente na última boca do fogão. Sua rotina começava às 5h da manhã e seguia o dia todo. O almoço era por volta das 10h e jantávamos assim que escurecia. Reunidos na cozinha, em volta do fogo, ouvíamos as histórias do dia. Meu tio tinha um rádio, ouvia algumas notícias, moda de viola e jogo de futebol. Dividia a cama com minha avó, o colchão era de palha e o silêncio era absurdo, parecia que todos os bichos resolviam acordar quando a gente ia dormir. As noites eram especialmente escuras.

A vida tinha outro ritmo, os dias pareciam maiores e melhores. As pessoas eram solidárias e amigas, não que não sejam mais (rs), mas apesar da longa distância do vizinho mais próximo, eles sempre se ajudavam. Ao final do dia de trabalho minha vó visitava com frequência filhos, parentes e amigos, sempre a pé. Ela andava quilômetros e tinha total noção de direção em meio aquela escuridão. Acho que foram essas caminhadas noturnas que me fizeram ficar atenta aos detalhes. Os olhos rodavam entre o céu repleto de estrelas e tudo que nos cercava. Aprendi sobre as fases da lua com ela, bem na prática. Adorava caminhar com a lua cheia, conseguia ver os buracos na estrada, as árvores ao redor, as encruzilhadas, mas principalmente, acompanhar os passos daquela mulher baixinha e apressada.

Foi com minha avó que essa história de práticas sustentáveis fez sentido na minha vida, de forma natural e necessária. Ela sabia tudo sobre uso racional da água, o reaproveitamento de materiais, o respeito à natureza, a sabedoria para além do acúmulo de títulos e de bens. Ela tinha a alegria de viver com simplicidade, com o que realmente era essencial. Tinha uma risada gostosa de ouvir e de ver, acho que foi com ela que aprendi a não ter medo de sorrir. Vejo tanto da minha avó na minha mãe e com o tempo parece que cada vez vejo mais. 

Do que realmente importou e importa nessa trajetória, com um olhar mais atento neste espaço de tempo da minha vida, posso listar algumas das coisas mais valiosas: sentar naquela varanda e observar por horas cada detalhe, da casa até o encontro do morro verde e o céu azul. Sentir o cheiro da fumaça do fogão a lenha saindo pela chaminé e invadindo a cozinha. Andar quilômetros pela estrada de terra à noite, olhando a lua e contando as estrelas, mesmo com medo de que no dia seguinte nascessem verrugas pela pele (coisas que minha mãe dizia quando a gente era pequena, rs). Ah, e se tivesse o direito de voltar no tempo uma única vez, queria ver minha avó sentada de novo naquela varanda, abraçá-la bem apertado e enquanto isso ela iria sorrir e falar o meu nome.

Então, quando volto para o presente tenho a certeza de que não estão nas gavetas, nos armários, nas coisas que acumulamos o que mais importa na nossa vida. Elas estão nas lembranças do que vivemos, nas pessoas que nos relacionamos para além das redes sociais, com as quais choramos, sorrimos, brigamos e conversamos olhando nos olhos. Com as quais nos importamos, às vezes concordamos e outras discordamos, mas acima de tudo nos respeitamos porque compreendemos nossas diferenças. Hoje sei que o importante nessa vida é ter tempo. Tempo pra poder observar o pôr do sol, tempo pra estar com quem se ama, tempo pra fazer o que se gosta. Tempo pra viver a vida sem atropelos e poder ver o tempo passar. O que realmente importa nessa vida está no tempo em que você está.

Crônica escrita especialmente para blog do Confrariando / A cura para sua coceira mental

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